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Acesso às mulheres a várias funções públicas da Justiça permitido há 100 anos

A partir da promulgação deste decreto passou a ser autorizado às mulheres o exercício da profissão de advogado
19 jul 2018, 17:05
Imagem de Regina Quintanilha, a primeira mulher licenciada em Direito e Advogada em Portugal
Imagem de Regina Quintanilha, a primeira mulher licenciada em Direito e Advogada em Portugal

Celebra-se hoje o centenário do decreto-lei n.º 4676 publicado no dia 19 de julho de 1918 no “Diário do Govêrno” que permitiu “à mulher portuguesa o desempenho de várias funções públicas.”

A partir da promulgação deste decreto passou a ser autorizado às mulheres o exercício, “quando munidas de uma carta de formatura”, “da profissão de advogado, de ajudante notário e ajudante de conservador”  e o “desempenho de funções de ajudantes de postos e das repartições do registo civil podendo desempenhar o lugar de oficiais do registo civil provisórios, (...) amanuenses e oficiais das Secretarias de Estado e mais repartições públicas, ou dos corpos administrativos”. Foi-lhes também reconhecida a “capacidade para servirem de testemunhas nos atos do estado civil, e nos atos notariais quando exercem profissões liberais” e as mulheres comerciantes, matriculadas como tais no registo comercial, passaram a poder votar na eleição dos jurados comerciais.

Este decreto acabou por não só abrir um novo mundo de possibilidades profissionais ao número crescente de mulheres que frequentavam cursos do ensino superior como, aliás, o próprio diploma reconhece - “é já porém mester reconhecer o facto da frequência das mulheres nos cursos de introdução secundária e superior, e o consequente advento das diplomadas ao exercício das profissões liberais” -, mas também por legitimar e regulamentar as atividades profissionais que algumas mulheres portuguesas já se arriscavam a exercer.

Foi o caso, por exemplo, da pioneira Regina Quintanilha, que se licenciou em direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra depois do Conselho Universitário se ter reunido para deliberar sobre o ingresso de uma aluna do sexo feminino. Tornou-se assim a primeira mulher licenciada em direito e advogada portuguesa, mas também a primeira procuradora judicial, notária e conservadora do registo predial. Apesar da abertura completa da advocacia às mulheres só ter vindo a ser decretada em 1918, Regina Quintanilha estreou-se no Tribunal da Boa Hora no dia 14 de Novembro de 1913 graças a uma autorização especial do Supremo Tribunal de Justiça.

O diploma de 19 de Julho de 1918 reflete as questões que começavam a estar cada vez mais na ordem do dia quanto ao papel das mulheres na sociedade portuguesa:  o acesso das primeiras mulheres a funções em vários sectores tradicionalmente considerados como reservados aos homens e o direito ao voto. Efetivamente, se o decreto tinha como principal objetivo regulamentar as profissões jurídicas, não deixou, também, de comentar a questão do voto deixando clara a mentalidade da época e o atraso de Portugal em comparação com as “adiantadas sociedades anglo-saxónicas” onde era já “comum a concessão do direito político de voto às mulheres”,  "[s]em se poder acompanhar ainda em Portugal esse cada dia mais largo reconhecimento da competência e da concorrência feminina”, já que “há contudo funções de direção e de iniciativa que naturalmente estão reservadas ao homem.” Este comentário surge em reação a um debate aberto que começou com o caso de Carolina Beatriz Ângelo, uma médica, viúva e mãe de duas crianças que aproveitou-se da omissão legal que existia na lei que dizia que só os chefes de família tinham direito ao voto sem especificar o sexo e fez prevalecer a sua condição de chefe de família para depositar o seu voto nas eleições para a Assembleia Constitucional de 1911. Como consequência, a lei foi modificada de forma a estabelecer claramente que só os homens poderiam exercer o direito de voto. Portugal teve, no entanto, de esperar mais de 60 anos para que o direito de voto se tornasse universal, algo que aconteceu após o 25 de Abril de 1974, com a lei n.º 621/74 de 15 de Novembro.

Quanto às demais profissões jurídicas, foi também preciso esperar pela Revolução dos Cravos para que as mulheres vissem autorizado o seu acesso às carreiras da Magistratura Judicial. Com o advento do Estado Novo, a situação da mulher tinha regredido muito, em particular na legislação, já que António de Oliveira Salazar considerava que “o lugar da mulher é no seu papel essencialmente familiar, como mãe, esposa, irmã ou filha” e que “o trabalho da mulher fora do lar desagrega este, separa os membros da família, torna-os um pouco estranhos uns aos outros”. Era assim proibido o  trabalho das mulheres na administração local, na carreira diplomática, na magistratura e em postos de trabalho no Ministério das Obras Públicas e existiam restrições ou proibições de matrimônio para certas profissões. Foi, no entanto, só em 1979, que uma lei (decreto-Lei n.º 392/79) passou a garantir a igualdade entre mulheres e homens em oportunidades e tratamento na área laboral e foi preciso esperar até 1990 para que Maria de Jesus Serra Lopes fosse eleita como a primeira bastonária da Ordem dos Advogados e 2004 para ver Maria Laura Leonardo tornar-se a primeira juíza a chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. 

Uma das mais significativas transformações das profissões jurídicas é sem dúvida a sua crescente feminização e é notável pensar que, em cerca de 35 anos, no caso das magistraturas, as mulheres passaram de estar legalmente impedidas de exercer profissões jurídicas a constituírem a sua maioria. Em 2015, segundo a Commission Européenne pour l’efficacité de la Justice, das 8 profissões exercidas em Portugal na maioria por mulheres, 3 eram da área da Justiça: 60% dos procuradores, 58% dos juízes e 54% das advogadas eram mulheres. É, por isso, importante que não nos esqueçamos do longo caminho percorrido na evolução do papel que é consagrado às mulheres na Justiça portuguesa e do progresso que foi feito nesta área.

Desde a autorização de acesso, o número de mulheres magistradas têm, naturalmente vindo a crescer todos os anos, tendo, por exemplo, passado de 181 em 1990 a 536 em 2000. No entanto, foi em 2007 que as mulheres magistradas, com um total de 846, tornaram-se mais numerosas que os 833 magistrados homens, segundo dados da DGPJ. Em 2016, a proporção de mulheres era quase 70% nos tribunais de 1ª instância, acima dos 40% nos juízos de 2ª instância, e cerca de 15% no Supremo Tribunal de Justiça de acordo com dados do 2018 EU Justice Scoreboard. Em 2017, num universo de 1771 magistrados judiciais, 702 eram homens e 1069 mulheres. No que diz respeito à advocacia, a profissão passou a ser exercida na maioria por mulheres a partir de 2009. Em 2017, dos 31 326 advogados que existiam em Portugal, 17 131 eram mulheres e 14 195 homens, segundo dados da DGPJ. 

Ministério da Justiça